segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A arrogância como ameaça

Deu no Estadão de ontem:


"O que leva um governante a ultrapassar limites e assumir atitudes arrogantes?


Tentemos uma explicação. Em princípio, tal condição se dá quando o mandatário atinge grau tão elevado de autossuficiência que se imagina superior aos pares. Essa carga psicológica geralmente toma corpo sob o empuxo de amplo apoio popular. Embalado pelos aplausos da massa, o figurante torna-se impermeável à crítica e refratário a qualquer ponto de vista que possa borrar o diáfano manto da imagem pública. Impregna-se de uma dualidade humano-divina, de acordo com a ótica descrita pelo sociólogo francês Edgar Morin em sua obra. Para ele, celebridades que frequentam o Olimpo da cultura de massas - artistas de cinema, cantores, mandatários, reis, rainhas, etc. - têm um parentesco com as divindades. Vivem cercados de áulicos. Deles se podem esperar frases como esta, pronunciada, em tempos idos, pelo onipotente Aristóteles Onassis, ex-marido de Jacqueline Kennedy: "Somente Deus e eu somos capazes de fazer algo a partir do nada."

Baixemos, agora, no nosso terreiro tupiniquim em pleno verão de 2009. Eis à nossa frente Lula, o Filho do Brasil, com uma história que será vista por milhões de brasileiros nos próximos meses. O território será inundado por cascatas de lágrimas. Com a maior popularidade dos ciclos presidenciais, comparando-se aos idolatrados Kubitschek e Vargas, Luiz Inácio, de tão convencido de que habita o Olimpo, já não se impõe limites. Dá lições aqui, puxa a orelha de outro acolá. Diz a um estupefato George W. Bush: "O problema é o seguinte, meu filho, nós ficamos 26 anos sem crescer, agora você vai atrapalhar? Resolve tua crise." Inebriado pela fama, sugere ser uma extensão de Cristo quando compara o Bolsa-Família ao milagre da multiplicação dos pães. Mais uma lição: "Se os americanos quiserem, podemos mandar tecnologia para eles salvarem os bancos." Se o Brasil enfrentou com galhardia os dissabores da crise, pode ditar ao mundo seu modelo de capitalismo. Claro, com o braço mais forte do Estado na condução da economia. E que ninguém nos venha dar lições.

Dessa forma, a arrogância desenrola o seu véu sobre o vasto domínio estatal. A ameaça apontada pela The Economist dirige-se também à ministra Dilma Rousseff, temida pelas atitudes enérgicas na cobrança aos auxiliares. Aliás, esse é o seu calcanhar de aquiles. O que salta à vista na administração federal é certa autossuficiência. Só o governo está certo. Com sua fala direta e sem medidas, Lula parece infalível. Mesmo que a peroração não resista à lógica. O amanhã vira hoje. Não por acaso, os bilhões de barris de óleo do pré-sal são puxados do futuro para irrigar, já, os cofres da União, de Estados e municípios. A farra da arrogância faz seu carnaval fora de época. O ufanismo do Brasil-potência chega a lembrar refrãos cantados no passado. A banda toca de maneira ininterrupta Lula Lá. Mas, e a infraestrutura? Onde estão os portos reequipados? Há estrutura para recepção dos grandes navios que descobrem o Brasil como potência turística? E os investimentos estratégicos para garantir o desenvolvimento autossustentável? São enrolados no tapete da linguagem tatibitate. Na outra ponta, os gastos do governo sobem às alturas. As estruturas tornam-se paquidérmicas. Enquanto isso, três áreas básicas continuam à espera de programas estruturantes: saúde, educação e segurança. Só para lembrar: o Brasil gasta três vezes mais que a China com saúde, mas tem indicadores mais baixos. Gastos com educação chegam a 5% do PIB, mas os estudantes brasileiros exibem os piores desempenhos na lista da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). E a segurança pública continua um caos.

Essa é a rápida leitura sobre a dúvida expressa pela mídia internacional. Pode-se falar de novo "milagre econômico"? Ou apenas de um grande avanço? Sob o signo da arrogância, emerge um pedaço de um passado de triste memória, coberto pela faixa "Brasil, ame ou deixe-o"."

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político

Um comentário:

Dalva M. Ferreira disse...

Temerário, no mínimo temerário. Enquanto isso, no Distrito Federal... eu não me canso de lembrar o quadro do taxista que cantava candidamente: "se gritar pega ladrão, não fica um, meu irmão!". Lembra dele?